Entrevista com Paulo Romeu Filho
Domingo, 5 de setembro de 2010.
Audiodescrição: Uma Luta de mais de 29 milhões de Cidadãos Brasileiros.
Entrevista sobre audiodescrição no boletim ONCB-News
ONCB-News // Informativo da Organização Nacional de cegos do Brasil // 04- 28 de agosto de 2010.
Casado, funcionário de carreira da Prodam em São Paulo, dedica pelo menos duas horas de cada um dos seus dias, à luta pela audiodescrição na TV, no cinema e em espetáculos audiovisuais em geral. estamos falando de Paulo Romeu Filho, que integrou recentemente a equipe de consultores da ONCB para as questões de acessibilidade.
Segundo ele, a audiodescrição é hoje uma luta que interessa diretamente a 14 por cento da população brasileira, 29 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Interessa ainda, aos familiares e amigos dessas pessoas, e a todos aqueles que lutam por igualdade de direitos.
Confira a seguir, a entrevista que ONCB-News realizou com Paulo Romeu. Conheça um pouco da atuação da ONCB nesse processo, veja como em outros países, os governos encaram a audiodescrição, saiba como será importante, agora e futuramente, a nossa mobilização e engajamento nessa luta.
ON: Paulo Romeu: Casado, Pai de família,funcionário de carreira da Prodam. Entretanto, não se pode falar hoje em audiodescrição sem que seu nome seja pronunciado. Como tudo isso começou? Quanto tempo da sua rotina você tem dedicado à luta pela audiodescrição?
PR: Tudo começou em 2005 quando assisti o filme Irmãos de Fé, o primeiro DVD lançado no Brasil com audiodescrição. Imediatamente percebi o potencial do recurso para a inclusão das pessoas com deficiência, permitindo o desfrute com total compreensão de todos os tipos de espetáculos e obras audiovisuais.
Naquela época, a ABNT estava elaborando uma norma técnica de acessibilidade específica para a televisão, que tratava do closed caption e da interpretação em LIBRAS para as pessoas surdas. O lançamento de Irmãos de Fé deu os subsídios para que a audiodescrição também fosse incluída na norma. Por sua vez, a norma da ABNT forneceu o embasamento técnico necessário para que o Ministério das Comunicações publicasse a Norma Complementar nº1/2006, concretizando a regulamentação dos dispositivos da Lei 10098 e do Decreto 5296 referentes à acessibilidade na televisão.
Em 2008, o Ministério das Comunicações, atendendo solicitação das emissoras de televisão, suspendeu a obrigatoriedade de transmissão de programas com audiodescrição, o que levou as discussões muito mais para o campo político do que técnico. Passei então a atuar como assessor das antigas UBC e FEBEC, e posteriormente da ONCB, para as negociações que passaram a acontecer entre as representações das pessoas com deficiência, as representações das emissoras de televisão e o Ministério das Comunicações
Foram dois anos de muito trabalho com a participação em reuniões técnicas, elaboração de cartas, ofícios e pareceres para as inúmeras consultas públicas promovidas pelo Ministério das Comunicações, até que, finalmente, em maio de 2010, uma nova portaria restabeleceu a obrigatoriedade da veiculação de programas televisivos com audiodescrição a partir de 2011.
Não saberia dizer quantas horas, minhas e de muitas outras pessoas, foram dispendidas nessas atividades que certamente tomaram boa parte de nosso tempo disponível. Atualmente, enquanto contamos os dias que faltam para julho de 2011, uso pelo menos duas horas por dia pesquisando por notícias, trabalhos acadêmicos, ou elaborando artigos para publicar no Blog da Audiodescrição, que criei com o propósito de ajudar na divulgação do recurso, servir como repositório de documentos para todos que já pesquisam sobre o assunto, informar e mobilizar as pessoas com deficiência e a sociedade em geral sobre nosso direito, agora garantido inclusive por uma convenção da Organização das Nações Unidas, de termos cinema, teatro e televisão em formatos que incluam os recursos de acessibilidade de que precisamos.
ON: Audiodescrição: descrição de imagens e sons não literais em produções audiovisuais como filmes, peças de teatro, programas televisivos, óperas e outros. Você diria que essa idéia já pegou entre as pessoas com deficiência visual no Brasil?
PR: Entre aqueles que já tiveram a oportunidade de assistir algum evento com audiodescrição, tenho certeza que sim.
Em todos os eventos audiodescritos que já participei, é muito gratificante ver a satisfação e o deslumbramento de todos aqueles que tiveram contato com o recurso pela primeira vez.
As pessoas cegas sabem naturalmente o que é a audiodescrição, pois já foram em cinemas, teatros, ou até mesmo em casa assistiram a um DVD ou a televisão, e tiveram alguma pessoa lhes descrevendo cenas impossíveis de serem compreendidas sem o uso da visão. Mas a audiodescrição feita de forma profissional é muito diferente daquela feita por nossos familiares e amigos, daí o deslumbramento com o recurso e a satisfação de se ver respeitado como qualquer cidadão.
De acordo com o censo realizado pelo IBGE em 2000, somos aproximadamente 16 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência visual. Em 2009, o Ministério da Cultura patrocinou uma pesquisa que apontou números surpreendentes, tais como: menos de 9% dos municípios brasileiros possuem salas de cinema, pouco mais de 20% dos municípios possuem teatros. Por outro lado, a pesquisa mostrou que mais de 95% das residências possuem aparelhos de televisão.
A análise destes números leva a conclusão evidente: apesar de grande parte das pessoas com deficiência visual já terem ouvido falar na audiodescrição, a maioria delas ainda não teve oportunidade de conhecê-la porque as emissoras comerciais de televisão ainda não transmitiram absolutamente nenhum programa com o recurso, enquanto que o cinema e o teatro têm abrangência muito mais restrita e estão concentrados nos grandes centros.
Apesar de boa parte das pessoas surdas darem preferência para a comunicação na língua de sinais, o closed caption, ou legendas específicas para os surdos, tornou-se popular entre eles porque a televisão, o mais democrático e mais abrangente meio de comunicação conforme demonstrado na pesquisa do Ministério da Cultura, vem continuamente aumentando a quantidade de programas que transmitem com o recurso em âmbito nacional.
Não tenho dúvida de que o mesmo acontecerá com a audiodescrição quando ela também estiver presente nos programas de televisão.
ON: Enquanto que nos países da Europa e nos Eua, a ad já é uma realidade desde a década de oitenta do século XX, como está a situação no Brasil?
PR: Sua pergunta me fez lembrar de uma reunião que participei no Ministério das Comunicações em 2008. Na ocasião, respondendo a uma afirmação dos radiodifusores que diziam ser a audiodescrição inexistente no Brasil, apresentamos uma pesquisa feita no Google pelo termo “audiodescrição”, que retornou aproximadamente 400 resultados em páginas da Internet brasileira. Hoje, pouco mais de dois anos depois, o Google apresenta dezenas de milhares de resultados para a mesma pesquisa.
No Blog da Audiodescrição é possível comprovar o crescente aumento da quantidade de eventos que disponibilizam o recurso da audiodescrição por todo o país: espetáculos de ópera, peças teatrais, apresentações de dança, sessões de cinema, desfiles de moda, passeios turísticos, palestras e seminários. Também é crescente a quantidade de trabalhos acadêmicos publicados por pesquisadores brasileiros sobre a audiodescrição, inclusive abordando o uso do recurso em sala de aula.
Portanto, estranho a declaração feita pelo assessor jurídico do Ministério das Comunicações em julho último, no qual afirmou que a audiodescrição no Brasil ainda acontece esporadicamente. Essa era a realidade em 2006, mas não corresponde ao que se pode constatar em 2010.
ON: Qual é o profissional que deve fazer audiodescrição? A propósito, o Brasil já tem bons profissionais nessa área?
PR: O profissional de audiodescrição precisa ter bons conhecimentos de tradução semiótica, linguagem teatral, linguagem fílmica, amplo vocabulário, capacidade de síntese, elaboração de roteiros, conhecimento das técnicas e softwares empregados na edição e produção de audiovisuais. Enfim, é necessário um conjunto de conhecimentos específicos em várias disciplinas, principalmente das áreas de comunicação, educação e letras.
Mas a principal característica do perfil de um audiodescritor deve ser a empatia, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar de um espectador com deficiência e saber exatamente o que precisa e o que não deve ser descrito, não superestimando nem subestimando a capacidade de percepção e compreensão desses espectadores.
Nesse ponto, o Brasil certamente já possui profissionais com grande competência e experiência.
A primeira notícia que temos da realização de audiodescrição no Brasil é de 1999 na cidade de Campinas, mas foi a partir de 2003 que tomou maior impulso. Desde então, audiodescritores brasileiros têm participado de diversos workshops e oficinas realizados com a participação de profissionais conceituadíssimos como Bernd Benecke, Joel Snyder, Joe Clarck.
Prova da competência dos audiodescritores brasileiros é o fato de alguns deles já estarem sendo solicitados para ministrar cursos e realizar trabalhos em outros países por emissoras de televisão, grupos teatrais, além de convites para participação e exposição de suas pesquisas em congressos internacionais.
ON: Há como fazer previsões? Acredita que estaremos como, daqui a dez anos, com respeito à ad no Brasil?
PR: Em países como a Inglaterra, já existem mais de trezentas salas de cinema e teatro que disponibilizam sessões audiodescritas regularmente, algumas emissoras de televisão do Reino Unido já transmitem 30% de sua programação com audiodescrição apesar de estarem obrigadas a veicular somente 10%.
Alguns dias atrás, li uma notícia em que o presidente dos EUA, Barac Obama, afirmou em um evento em comemoração pelo vigésimo aniversário da ADA – Americans Disabilities Act, que a audiodescrição também vai se tornar obrigatória naquele país.
Em outros países como Portugal, Espanha, Austrália, Japão, Canadá, Itália, Alemanha, Holanda, dentre vários outros, a audiodescrição também já acontece regularmente.
No Brasil, a última portaria do Ministério das Comunicações publicada em maio deste ano estabeleceu a obrigatoriedade de veiculação de pelo menos duas horas de programação audiodescrita por semana pelas emissoras de televisão, aumentando essa quantidade um pouco a cada ano, até chegarmos a 20% da programação após dez anos. Em relação à outras mídias e tipos de manifestações culturais, ainda não existe regulamentação, mas a quantidade de eventos tem crescido espontaneamente.
Esses dados demonstram que a audiodescrição é um recurso de acessibilidade, uma ajuda técnica que vem sendo exigida em todo o mundo não apenas pelas pessoas cegas, mas também por pessoas com outras deficiências como disléxicos, pessoas com deficiência intelectual, idosos que têm suas capacidades reduzidas com o passar dos anos.
Portanto, assim como já acontece com o closed caption, a audiodescrição no Brasil certamente vai se tornar mais conhecida e mais aplicada com o passar dos anos
ON: Que filmes você recomendaria, os quais já têm o recurso da Ad e podem ser encontrados nas locadoras?
PR: Nas lojas e vídeolocadoras é possível encontrarmos três filmes brasileiros cujos DVDs foram produzidos com audiodescrição. São eles: Irmãos de Fé, o Signo da Cidade, e mais recentemente Chico Xavier.
A Programadora Brasil, distribuidora de filmes vinculada ao Ministério da Cultura, também disponibiliza diversos títulos com audiodescrição, mas somente para clubes de cinema, para exibição em sessões não comerciais.
Em Fortaleza, o grupo LEAD – Legendas e Audiodescrição da Universidade Estadual do Ceará também lançou um projeto que disponibilizará DVDs de filmes com audiodescrição regularmente.
Mas tenho notícias de que, muito em breve, uma das maiores produtoras e distribuidoras de filmes do Brasil passará a produzir todos os seus títulos com audiodescrição, assim como já faz com o recurso do closed caption.
ON: você diria que a ad ainda é uma luta das pessoas, individualmente? Como vai a participação das organizações de pessoas com deficiência nesse processo?
PR: Sei de muita gente envolvida e comprometida com essa luta, mas o poder econômico e a capacidade de lobby daqueles que são contrários a implementação da audiodescrição é imenso.
Desde 2005, as extintas UBC e FEBEC não exitaram em se colocar ao lado das pessoas com deficiência, participando, inclusive presencialmente, de todas as ocasiões em que o assunto foi tratado pelo Ministério das Comunicações.
A partir de 2008, a ONCB, que surgiu da unificação da UBC e FEBEC, tem demonstrado disposição e firmeza ainda maior em lutar pela concretização desse nosso direito.
A ONCB participa da ADPF 160como amicus curae, uma ação promovida pelo Conselho dos centros de Vida Independente – CVI-Brasil e pela Federação das Associações de Síndrome de Down – FBASD, que tramita no Supremo Tribunal Federal para exigir do Ministério das Comunicações as medidas necessárias para a efetivação desse direito das pessoas com deficiência. Estas mesmas instituições também participaram como litis consorte de um Mandado de Segurança para exigir do Ministério das Comunicações a reabertura de uma consulta pública sobre a audiodescrição em que os documentos para os quais o ministério solicitava contribuições foram divulgados em formatos inacessíveis para as pessoas cegas; mais recentemente, foi aprovado em assembléia da ONCB uma autorização para que a direção da entidade protocole uma denúncia contra o governo brasileiro no Comitê de Monitoramento da Convenção Sobre direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.
A antiga Corde e o Conade também não faltaram com o seu compromisso de lutar pela implementação da audiodescrição no Brasil.
Portanto, do ponto de vista político e jurídico, as instituições representativas de pessoas com deficiência têm lançado mão de todos os instrumentos de que dispõe para garantir o respeito ao nosso direito.
Entretanto, voltando ao que disse no primeiro parágrafo dessa resposta, os contrários a implementação da audiodescrição dominam os principais meios de comunicação, apelidado de o “quarto poder da república”, e o argumento mais respeitado por eles é a opinião pública.
Como disse anteriormente, em 2000 éramos 16 milhões de brasileiros com algum nível de deficiência visual, 25 milhões de pessoas com todos os tipos de deficiências. Hoje, 10 anos depois, acredita-se que somos 29 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência.
Esse é um contingente que não pode ser desprezado, mas estou convicto de que apenas a atuação política e judicial das instituições representativas das pessoas com deficiência não será suficiente para fazer que empresários mais preocupados com seus lucros e que, em todas as oportunidades, sempre perguntam “quem vai pagar a conta”, cumpram suas obrigações. estou convencido de que também será necessário uma grande união e um grande esforço das instituições representativas, das entidades de, das entidades para, e também das próprias pessoas com deficiência no sentido de reivindicar do governo e dos meios de comunicação o respeito ao seu direito, informando e difundindo a audiodescrição na sociedade como um todo para formar um senso comum, evitando assim que venhamos a ter nova decepção em julho do próximo ano, repetindo o que já aconteceu em julho de 2008.
ON: suas últimas palavras para os leitores do ONCB-News?
PR: Agradeço muito a oportunidade de falar para os leitores do ONCB News sobre audiodescrição, e aproveito para convidá-los a se envolverem nesta luta pelo direito à cultura, à educação, à comunicação e ao lazer em formatos que contemplem os recursos de acessibilidade de que precisamos.
Para se manterem informados sobre essa batalha, acessem o Blog da Audiodescrição: http://blogdaaudiodescricao.blogspot.com